O resultado é que 17% da cobertura original da Amazônia brasileira não
existe mais. Não fosse pela dimensão extraordinária da floresta, ela já
estaria ferida mortalmente. As marcas da violência aparecem nos mapas
de monitoramento como enormes manchas vermelhas que avançam sobre a
floresta, consumindo-a pelas beiradas e espalhando-se ao longo de rios
e estradas. Nas regiões mais devastadas, como o interior de Rondônia, o
norte de Mato Grosso, o leste do Pará e o norte do Maranhão (que juntas
formam o chamado Arco do Desmatamento), o vermelho já predomina.
Nos 83% restantes da Amazônia, a situação também inspira
cuidados. Por baixo da copa das árvores, a floresta é marcada por
queimaduras, arranhões e outras cicatrizes que não aparecem nas imagens
de satélite. Pesquisadores do Instituto do Homem e do Meio Ambiente da
Amazônia (Imazon), em Belém, estimam que só 43% do bioma permanece
verdadeiramente intacto, livre de ocupação e da influência de
atividades humanas – sejam elas legais ou ilegais.
A boa notícia é que o desflorestamento está em queda. Caiu
mais de 50% nos últimos três anos: de 27.379 km² em 2004 (o segundo
maior índice da história) para 14.039 km², em 2006. Mas é como
comemorar uma tragédia. Catorze mil km² podem parecer pouco na escala
da Amazônia, mas equivalem a 1,4 milhão de campos de futebol, ou 2,5
vezes a área do Distrito Federal. Em menos de um ano, seria suficiente
para arrasar com todos os remanescentes de mata atlântica do litoral de
São Paulo. Em ritmo semelhante, as belas florestas da Serra do Mar,
Ilhabela, Juréia, Ilha do Cardoso e Jacupiranga desapareceriam num
piscar de olhos.
A maior parte do desmatamento é ilegal. Pelo Código Florestal,
proprietários de terra podem derrubar até 20% da floresta para práticas
econômicas. A maioria derruba muito mais – não só em terras privadas,
mas também nas públicas. Mato Grosso e Pará são os Estados que mais
desmatam. O Amazonas, um pouco mais isolado da fronteira agrícola, é o
que tem a maior parte de seu território conservada: 98%. Rondônia,
Maranhão e Tocantins já quase não têm mais florestas fora das áreas de
conservação.
Não há consenso sobre os motivos para a diminuição do
desmatamento. Apesar dos esforços intensos do governo com a criação de
áreas protegidas, fiscalização, repressão e regulamentação fundiária,
um estudo do Imazon indica que 83% da variação dos índices de
desmatamento nos últimos 12 anos (1995-2007) se deve exclusivamente a
oscilações nos preços da soja e da carne no mercado internacional – as
duas principais commodities que impulsionam a destruição da floresta.
“A influência é muito forte”, diz o pesquisador Paulo Barreto,
autor dos cálculos. “Com base nessa relação, a queda do desmatamento
nos últimos anos foi totalmente previsível.” Outros cientistas
discordam. “Que o mercado tem influência, não há dúvida, mas dizer que
só isso explica o que aconteceu nos últimos três anos não é correto”,
afirma Carlos Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
(Inpe). Há quem considere muito cedo para tirar conclusões .
“Precisamos de uma avaliação que seja justa por um lado, mas não
ingênua pelo outro”, opina Paulo Moutinho, do Instituto de Pesquisa
Ambiental da Amazônia (Ipam). “Se tivermos mais dois anos de redução no
desmatamento, aí sim, poderemos dizer que há uma tendência de queda.”
O momento é de apreensão: com o reaquecimento do mercado
internacional de commodities, não se sabe por quanto tempo será
possível manter o desmatamento em ritmo de queda. O governador de Mato
Grosso, Blairo Maggi, empresário conhecido como “rei da soja”, diz que
o desmatamento é um “leão adormecido”, prestes a acordar. Muitos temem
também o avanço da cana-de-açúcar – que, levada pela onda dos
biocombustíveis, está entrando na região e empurrando os bois mais para
dentro da floresta.
Os primeiros sinais de alerta já soaram. Entre junho e
setembro deste ano, o desmatamento na Amazônia aumentou 7,5% em relação
ao mesmo período de 2006, segundo o sistema de Detecção do Desmatamento
em Tempo Real (Deter), gerenciado pelo Inpe. Começou com uma queda de
33% em junho, depois cresceu 4% em julho, 53% em agosto e 107%, em
setembro. “Os dados apontam uma retomada de aceleração do
desmatamento”, avalia o gerente do Programa de Monitoramento por
Satélites do Inpe, Dalton Valeriano. As coisas parecem estar voltando
ao normal, após uma anormalidade que era o desmatamento muito baixo nos
últimos anos.” A área total desmatada nos quatro meses passou de 4.250
km² para 4.570 km². Rondônia registrou o quadro mais crítico, com
aumento de 600% no mês de setembro. No Pará e em Mato Grosso, o aumento
total no período foi de 50%.
As causas da retomada também são motivo de especulação. O
reaquecimento do mercado é o principal suspeito, talvez intensificado
pelo calor de uma seca tardia e por interesses políticos ligados às
eleições municipais de 2008.
O Ministério do Meio Ambiente prepara uma estratégia
emergencial de combate para o próximo ano, assim como uma nova versão
do Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento da Amazônia, com forte
ênfase no uso sustentável da floresta e no aproveitamento de áreas já
desmatadas. O secretário executivo da pasta, João Paulo Capobianco,
acredita que será possível manter o desmatamento em queda, mesmo com
uma retomada dos preços de soja e carne. “A realidade agora é outra.
Pela primeira vez temos uma atuação integrada, planejada e sistemática
na região”, diz.
As taxas anuais de desmatamento na Amazônia são calculadas de
agosto de um ano a julho do outro. Para Capobianco, o aumento recente
preocupa, mas não significa que o índice total voltará a crescer. “O
Deter foi criado justamente para isso, para detectar tendências a tempo
de fazermos alguma coisa a respeito”, afirma. Dois dos quatro meses
analisados (junho e julho) já foram computados na taxa de 2007, que
poderá ser a menor da história – estimada em torno de 10 mil km². O
cálculo oficial deverá ser divulgado neste mês pelo Inpe. “Quanto menor
o desmatamento, mais difícil é mantê-lo baixo”, afirma Capobianco. “O
aumento relativo parece grande, mas em números absolutos ainda é muito
pouco, de cerca de 320 km².”
Por enquanto, os cenários para o futuro permanecem pouco
animadores. Pesquisadores estimam que 40% da Amazônia poderá
desaparecer até 2050 se não houver uma alteração drástica no tratamento
da região. “Ainda é cedo para dizer se houve uma mudança de
trajetória”, diz o cientista Britaldo Soares-Filho, do Centro de
Sensoriamento Remoto da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “O
desmatamento arrefeceu, mas o modelo de ocupação predatória continua.
Faltam incentivos para andar na lei; quem tenta fazer a coisa certa é
penalizado.”
A dura realidade na Amazônia é que o crime ambiental compensa.
Quem pratica raramente é pego e quem é pego quase nunca sofre punição.
Praticamente ninguém é preso. Bilhões de reais em multas são aplicados,
mas quase nada é arrecadado. Quem desmata lucra com a madeira. Quem
conserva não ganha nada. Por isso, a forma mais fácil de ganhar
dinheiro na floresta é acabando com ela. “Por bem ou por mal, tudo na
Amazônia depende do desmatamento. É o que mantém a economia
funcionando”, diz Capobianco.
Assim como há muitas Amazônias, há muitos tipos de
desmatamento, com causas que variam de acordo com as características
sociais, ambientais e econômicas de cada região. De uma maneira geral,
entretanto, todos carregam em comum a herança de um modelo econômico
centrado na agropecuária e na remoção da floresta como forma de
valorizar a terra. Até o fim da década de 80, o desmatamento era
subsidiado até pelo governo, que exigia a remoção da floresta para
fazer a titulação das terras.
Hoje, o desmatamento não é mais incentivado, mas para a
conservação resta apenas o incentivo ético de preservar a natureza.
Modelos econômicos alternativos, como o manejo florestal, até existem,
mas são todos mais caros, demorados, burocráticos e tecnicamente mais
complexos do que desmatar. Por mais magros que sejam os bois, eles
pagam a conta no fim do mês. A floresta, não. Enquanto esse modelo
perdurar, dizem os especialistas, não há contingente de polícia que dê
conta. Na prática, a única maneira de salvar a floresta é fazer com que
ela dê dinheiro.
“Infelizmente, é uma questão econômica. Precisamos
urgentemente de um mecanismo monetário de valorização da floresta em
pé”, afirma Paulo Moutinho, do Ipam. “Sem isso, o destino da Amazônia
será o mesmo da mata atlântica; não tenho dúvida.”
Para tanto, não seria preciso nem mexer na floresta. Bastaria
mantê-la intacta, reconhecendo (e remunerando) os serviços ambientais
que são prestados por ela, como produção de chuvas, controle de erosão
e armazenamento de carbono. Recentemente, uma coalizão de nove ONGs
apresentou um Pacto pela Valorização da Floresta e pelo Fim do
Desmatamento da Amazônia, com meta de zerar a destruição do bioma até
2015. O primeiro item na lista de prioridades: “criação de instrumentos
normativos e econmicos que valorizem a floresta em pé”. O custo: R$
1bilhão por ano.
O governo do Amazonas criou o Bolsa-Floresta, programa que dá
R$ 50 por mês a famílias que deixam de desmatar, como pagamento pela
preservação dos estoques florestais de carbono. O governo federal
também quer criar uma “economia da floresta”, baseada na exploração
sustentável de produtos naturais. O passo inicial foi dado com a
aprovação da Lei de Gestão de Florestas Públicas e a criação do Serviço
Florestal Brasileiro (SFB), que vai supervisionar a concessão de áreas
federais para empreendimentos privados e comunitários.
Além da madeira, a intenção é incentivar o aproveitamento de
outros produtos, como frutos, óleos, fibras e resinas. Hoje, no modelo
de exploração ilegal, a floresta é explorada como numa pesca de
arrasto: algumas poucas espécies mais lucrativas são aproveitadas,
enquanto o resto é abandonado – no caso da Amazônia, deixado no chão
para queimar. Apenas uma parte ínfima da biodiversidade é aproveitada
de maneira efetiva. Mais de 70% do desmatamento é feito para a abertura
de pastos. Seria o mesmo que dinamitar a Grande Barreira de Corais da
Austrália para instalar fazendas de piscicultura. Uma tragédia que
acontece diariamente na Amazônia.
“Enquanto a floresta não tiver valor econômico, vai sempre
perder para a soja, a madeira, o boi”, diz a geógrafa Bertha Becker, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Só preservar não basta.
Temos de aprender a usar o patrimônio da Amazônia sem destruí-la.”
A solução não está só nas florestas. Para o pesquisador
Evaristo Miranda, chefe da Embrapa Monitoramento por Satélite, em
Campinas, a redução do desmatamento passa por melhoria da qualidade de
vida nas cidades amazônicas – onde vivem mais de 70% dos 23,5 milhões
de habitantes da região. “Se existisse mais emprego nas cidades, o
desmatamento cairia drasticamente”, afirma Miranda, que há 20 anos
estuda o desenvolvimento da Amazônia por imagens de satélite e
pesquisas de campo. “Não dá para falar em conservação na Amazônia sem
falar nas cidades; é uma hipocrisia.”
Miranda é pragmático: além de investir em sistemas
agroflorestais (hoje altamente improdutivos), é preciso investir em
pesquisas para aumentar “verticalmente” a produção agrícola e pecuária
na região. “Quem vive na Amazônia também quer leite, carne, iogurte”,
diz. “Com tecnologias adequadas, é possível dobrar a produção sem
derrubar uma árvore. Talvez até triplicar.”
Por fim, engana-se quem pensa que o desmatamento abre caminho
para o desenvolvimento. Segundo estudo recente do Imazon, os índices de
qualidade de vida nas regiões mais desmatadas são equivalentes ou até
piores do que nas regiões mais preservadas. Comunidades que cresceram
economicamente com o desmatamento são exceção.
Essa talvez seja a ironia mais cruel: a Amazônia está sendo
destruída de graça. Sai a floresta, desaparece a biodiversidade, fica a
pobreza.
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